Ògún: um modelo de sociedade civilizadora

Vitor Cardozo
4 min readMay 25, 2021

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Nesse texto vamos falar da construção do homem e sua relação com a sociedade sobre a perspectiva da divindade Ògún o grande civilizador e educador da sociedade iorubá.

Como ponto de partida se faz necessário entendermos primeiramente o funcionamento e a organização da sociedade sobre a qual Orixá Ògún é forjado. A sociedade Ioruba é tradicionalmente formada por agricultores, caçadores e pescadores. É um povo sedentário organizado em povoados de pequeno e médio porte e tendo também algumas capitais e reinos de tamanhos maiores.

Já no Ocidente, temos uma organização social completamente divergente, isso irá construir demandas diferentes para esse indivíduo e, portanto, para a sociedade que irá se constituir a partir dele. Frantz Fanon vai dizer que quando o homem branco deseja o mundo, ele constrói uma relação de posse e domínio sobre ele, de modo que “Ele se considera o senhor predestinado desse mundo. Ele o submete, estabelece-se entre ele e o mundo uma relação de apropriação”. E já o corpo Preto se opõe a essa lógica, pois o corpo e o espírito são uma unidade e se integram e se relacionam de forma una com esse mundo, levando em conta sua materialidade e imaterialidade.

Dessa forma podemos entender que o sujeito se constitui a partir de uma relação direta entre suas ações e a experiência cotidiana, o que nega diretamente a lógica ocidental de que o homem precisa ser formado, que há algum processo que possa o construir antes mesmo das experiências vivenciadas. E nessa direção Ògún se constitui e constituirá a partir desse trabalho como o professor e condutor desse homem ao progresso e construção de uma lógica civilizatória.

Existe um cântico de Ògún ao qual colocarei aqui a tradução para que sirva de ponto de partida para nossa análise:

Não existirá mais de uma divindade como Ògún

Sem Ògún

Não se limpa o mato (para plantar).

Sem Ogun não se abre caminho.

A enxada pertence a Ògún

Ògún é o ferreiro.

Ògún é agricultor e guerreiro.

Sem Ògún não há comida.

A partir dessa cantiga se pode perceber a importância em que esse Orixá possui na sociedade Iorubá no desenrolar do quotidiano. Ògún é o herói civilizador de seu povo, Orixá primordial, filho do próprio Eledumaré, designado pelo próprio para abrir caminho à civilização. Ele é o senhor do saber que lhe permite o poder da transformação que se manifesta na história do povo iorubá, e por lógica no sujeito preto, através da de seu trabalho com o ferro e o fogo.

Ògún domina as principais técnicas que movimentam a sociedade. Ele é metalúrgico, agricultor, caçador, guerreiro, ferreiro e minerador, sendo assim ele possui o conhecimento primeiro sobre as artes básicas para a manutenção da vida e é ele quem passa esses conhecimentos para a sociedade.

Ao ensinar o homem as principais técnicas para difusão da vida, em especial a agricultura, a divindade do ferro passam a exercer um importante papel enquanto professor e não só isso, ele passa a construir uma relação em que esse sujeito a partir da agricultura colhe aquilo que conduz o ser humano ao encontro com a divindade e com a própria terra criando assim um elo forte.

Esse papel de professor é anterior inclusive do contato de Ògún com o homem a quem ele ensina o segredo da cultura, criando e ensinando as importantes profissões. O que se permitiu uma grande transformação na organização social e o conecta diretamente ao trabalho e as tecnologias que são os pilares para a evolução humana nas mais variadas esferas. Ògún executou a missão de ensinar em um primeiro momento a outras duas divindades Oxossi e Erinlé, foram eles os primeiros alunos que receberam o aprendizado sobre a arte da caça e os mistérios e táticas da floresta.

Então a partir das táticas de educação, Ògún faz mais do que ensinar técnicas práticas de sobrevivência e subsistência. Ele na realidade está diretamente ligado a construção de valores que vão firmar a humanidade. Não é incomum atribuir a Ògún o papel da grande divindade que detém e ensina valores civilizatórios a humanidade e esses valores são contidos nas múltiplas tarefas que essa divindade entrega aos humanos, através dos ritos e da própria comunidade dos caçadores ao qual ele é líder.

Logo, a referência dos valores passados por Ògún a humanidade, vão além da prática da utilização das diversas ferramentas e artes para a interação com o mundo. E esse processo de interação é constituído dentro de um ethos que envolve diferentes dimensões onde seres vivos, não vivos e divindades se integram. E esse olhar civilizador trazido pela divindade, coloca completamente em cheque as noções ocidentais de civilidade e humanismo que tende a excluir todo e qualquer vestígio de animismo e fetichismo da construção do homem e da sociedade em que ele entrega.

No entanto, o que Ògún e os iorubás nos sugere é pensar um modelo de civilização a partir da forja, da terra e da caça, construindo então uma educação da partilha entre as dimensões que atravessam as encruzilhadas do corpo negro e evidencia assim a tecnologia como bússola que se valida na relação com o divino, de modo que é necessário entender que o ser humano só faz sentido a partir de uma relação e integração com o todo e da relação com as múltiplas vozes que emanam da terra.

Vitor Cardozo
Ògún Yande

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