Ògún e São Jorge um encontro de guerreiros.

Vitor Cardozo
3 min readApr 23, 2022

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Hoje naturalmente surge os discursos São Jorge não é Ògún, Ògún não é São Jorge, esse discurso já é batido e surge não só dia 23 como em várias outras datas sincréticas. Mas, hoje vamos trocar uma ideia sobre esse tema a partir de um outro olhar.

São Jorge foi um soldado romano que viveu nos anos 275 a 303. Segundo Jacopo de Varezze, seu nome, Georgius, deriva de “gerar” e gyon, “luta”, significando ‘lutador sagrado’. Já Orixá Ògún tem sua origem no mito da criação, sendo o líder dos Irumolés da Esquerda, tem sua origem na cidade de Ire no Estado do Ekiti na Nigéria, uma das traduções dada ao nome “Ògún” seria Guerra.

Temos pontos de aproximação entre essas duas figuras que são ligados a Guerra, a defesa do povo e a proteção, um fato interessante é que o santo católico, também foi peregrino, também largou seu lar e seguiu andando em desprezo ao mundo, tal qual Ògún que ganha o título de Orixá Olonã e abandonou seu reino tornando-se um desbravador pelos caminhos.

Muitos são os pontos de similaridade entre ambas as figuras míticas, isso quer dizer que são a mesma figura? Evidente que não! Suas origens mitológicas não são as mesmas e nem litúrgicas, uma vez que pertencem a religiosidades e nacionalidades diferentes. Esbarramos aqui na questão do sincretismo que não é exclusividade das religiões afrobrasileiras, o sincretismo está presente em muitas religiões pelo mundo, inclusive na formação do Catolicismo, que muito assimilou dos cultos pagãos Europeus em sua formação.

No dicionário Oxford para a língua portuguesa, o sincretismo religioso é definido como a “fusão de diferentes cultos ou doutrinas religiosas, com reinterpretação de seus elementos”. No próprio continente Africano entre o povo do Congo que teve colonização Portuguesa ela já se fez presente.

Deu-se uma intensa reinterpretação de crenças, mitologias, símbolos e costumes que levaram, de um lado, missionários a acreditarem que catequizavam com êxito o povo e, do outro, um povo que entendia continuar com suas antigas crenças religiosas recebendo novos valores católicos aos seus tradicionais costumes. As igrejas ganhavam o nome de nzo nkisi, a bíblia era apresentada pelo clero católico como mukanda nkisi e os próprios padres se intitulavam em diversos momentos, como ngangas (SOUZA, 2002, p.66- SANTOS, Guaraci Maximiano dos. Umbanda, Reinado e Candomblé de Angola: uma tríade Bantu na promoção da vida responsável. Belo Horizonte, 2015. Dissertação de mestrado.)

Aqui no Brasil, mais precisamente em Salvador onde é o berço do candomblé, o mesmo processo ocorreu e de forma muito similar entre os negros escravizados, o Catolicismo era a religião oficial do Império e depois da República, esses negros eram forçados a aderirem a fé cristã, e foi através desse sincretismo que se fez possível a assimilação e continuidade dos cultos originários, a partir de novas roupagens.

Desse modo aqui no Rio que é sincretizado como Ògún, São Jorge aprendeu a comungar da feijoada, e Ògún aprendeu a ser louvado a partir da Alvorada de Jorge. Essa é a maravilha da cultura e suas singularidades. De todo modo, hoje é dia de feijão, hoje é dia de alvorada, hoje é dia de adahun para o santo guerreiro. Essas “divindades” tão queridas que exprimem a ideia de força, de proteção, de vitória para um povo que tem muitas batalhas a serem vencidas, muitas balas perdidas a serem desviadas. O que da vida a certos processos é o imaginário popular, é a vontade do povo, nenhum aspecto cultural/religioso se sustenta sem que o povo de movimento a ele. Consciente ou inconscientemente no imaginário popular carioca essas figuras se fundem.

Eu enquanto iniciado para Ògún, devoto de Orixá Ògún, não tenho devoção ou qualquer processo de fé a São Jorge ou qualquer outro Santo Católico, mas respeito profundamente a importância de São Jorge através do sincretismo para que eu pudesse ter sido iniciado a Ògún e para que ainda hoje eu possa seguir cultuando Ògún sem precisar travestir essa devoção a figura de Jorge da Capadócia.

Pelo dia de hoje Salve Jorge!

Ògún Ye! Mo Ye!

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