Odú: A inteligência viva do oráculo.

Vitor Cardozo
8 min readJun 30, 2021

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Pensar Odú é pensar uma tecnologia processamento de dados que tem sua origem nos tempos imemoriais. Antes de embarcarmos nessa tecnologia profunda, precisaremos compreender algumas narrativas anteriores. Precisamos compreender o ser humano racional como um descendente divino de Baba Olódùmarè que se conecta e significa ao cosmo metafísico. Entender esse homem, no processo de construção das suas vivências na terra. E nesse sentido os odús serão as coordenadas para um viver pleno.

Entretanto antes de falarmos diretamente sobre os Odús, precisaremos falar de Orunmilá e o contexto ao qual ele está inserido.

Entre os Iorubas, Olódùmarè é o nome mais antigo atribuído a Deus, sendo ele aquele que é perfeito, o supremo em qualidades. Sendo ele o regente do universo. Para pensarmos Odú, precisamos conhecer Orunmilá, ele que estava entre os primeiros Irunmolés criados, aquele que é Elérí Ìpín, ou seja, a testemunha da criação. Ele é o grande historiador do universo, podemos pensar que é Baba Orunmila quem vai dar origem e organizar os Odús, que gosto de representar como capítulos da história.

Orunmilá, também chamado de Baba Ifá, não existiu apenas como um Ará Orún, ele veio a terra, e durante sua estadia nela. Participou do processo de expansão do homem e seus mais variados processos. E é dentro desse contexto que surge a necessidade do homem de consultar um oráculo. E nesse momento Ifá se faz fundamental nesse processo, pois é Orunmila Ifá que é a inteligência de Olódùmarè. Portanto, Orunmila é a sabedoria, é aquele quem detém toda a sabedoria para o direcionamento e aconselhamento da humanidade.

Se Orunmilá é o historiador e os Odús são os capítulos da história, agora vamos nos aprofundar especificamente no objeto do texto, que são os Odús enquanto fonte detentora das narrativas humanas e inumanas. Nesse contexto, iremos pensar Odú apartir do locus da religião dos Orixás, e não a partir do culto a Orunmilá Ifá, pois para tal não tenho sabedoria, uma vez que não sou sacerdote do culto a Ifá, ou tenho qualquer aproximação com ele. É importante ressaltar que esse texto é formado a partir de minha visão enquanto babalorixá e a forma que entendo e opero Odú. Pois se Odú é uma tecnologia ele pode ser operado e aplicado das mais variadas formas. Sendo que é impossível falar de Odú sem que citemos Orunmilá/ Ifá, mas, saliento novamente que sempre que lerem esses termos entendam que falarei a partir do meu lugar diaspórico de minha tradição de candomblé, sem nenhuma relação com o culto de Ifá.

Os Odús trazem são lidos a partir de um conjunto de versos e frases que são apresentados a partir de uma representação numérica binária. Esses padrões são representados a partir de signos formados por dois elementos de um grupo de quatro, terra, fogo, água e ar, os mesmos elementos que estruturam o culto a Orixás.

Devido a essa estrutura, é que teremos 256 formas de conhecimento e orientação que são acessadas a partir do Oráculo, entretanto já se faz importante ressaltar que no candomblé não acessamos a partir do Merindelogun os 256 Odú ifá, mas falaremos disso mais a frente. Os Odú Ifá nos trazem seus significados como forma de alertas através de suas parábolas, que irão exigir do sacerdote que está lendo o jogo um vasto conhecimento sobre as mesmas e a dinâmica da sociedade e filosofia africana ao qual essas narrativas estão inseridas, para que dessa forma a mensagem que esses signos carregam serão bem interpretadas e colocadas para o consulente.

Retomando sobre os Odús, esses são separados por dois grupos o primeiro grupo é composto pelos Olodus ou Odús Agbas, os dezesseis mais antigos e são sobre esses que debruçamos no Merindilogun, eles seriam os únicos que habitaram o Orun. O segundo grupo é composto pelos Omodús, que representam os 240 que nasceram aqui na terra, são originados a partir da união aos pares de cada Odú Agbá esses são acessados dentro do culto de Ifá, eles são tidos como os que contribuíram com os ciclos naturais de acontecimentos e desenvolvimento na vida dos homens.

Esses signos trazem dentro de si matrizes que contribuíram com o processo de formação da vida na terra. Eles são forças cíclicas de renovação, regem o processo de divinação oracular, são os caminhos do predestino do homem, de acordo com o livre arbítrio de cada um. Então podemos entender que o nosso destino é descrito pelos presságios trazidos por esses Odús se apresentando como caminhos de possibilidades e probabilidades, que nem sempre são construídos no campo da consciência. Antes de virmos ao mundo escolhemos diante de Olodumaré, Èsù e Orunmila o destinho que iremos cumprir aqui na terra, ao passarmos por onibode orún, o porteiro, esquecemos desse destino e nesse momento nos é garantido o livre arbítrio, entretanto em nosso Orí fica registrado esse destino no campo da inconsciência, então nosso Orí nos direciona a esse destino, e através da consulta oracular, Orunmilá e Èsù que também conhecem esse destino vão nos direcionar sempre para esse destino.

Odú é a forma básica do conhecimento e da dinâmica desse destino, dessa forma percebemos Odú como a inteligência do saber para se equilibrar com a vida. Os 16 Odús principais são estruturais dentro da cultura pois eles comportam várias áreas de conhecimento. Dentro da filosofia Ioruba nós enquanto indivíduos integrantes e participantes da natureza dependemos do equilíbrio através da harmonia, para nos mantermos sobre a lógica do bem viver que será também a forma de tocar e interagir com o divino.

Mas, o Destino não está no futuro, nem no além. Está aí mesmo, no instante em que se vive, no aqui e no agora, como um processo que absorve os seres sem deixar resto, sem permitir valor. Cada momento é singular, cada objeto único, cada palavra é tributária de sua circunstância particular — e assim tudo se repete, morrendo e renascendo ciclicamente. Por isso, Ifá pode conhecer o Destino: quando se está no domínio cíclico, basta conhecer as espirais do ciclo para que a predição se torne possível. (SODRÉ, 1983, p. 146).

Já entendemos um pouco do que são os Odús em paralelo com as narrativas do destino da humanidade, agora vou fazer uma breve apresentação de cada um desses Odús conforme a visita de Orunmilá a cada um deles conforme narrado por Gomes 2015.

Odú Éjì Ogbe representa o princípio da vida, os conflitos e os seus segredos e sua individualidade, invoca a ideia de destino, de futuro, conhecer os obstáculos, as opções.

Òyèkú Méjí representa o conhecimento sobre a morte, aqui se presume a ideia de que estar diante dos mistérios e horrores se faz necessário como um estágio a ser superado ou passo necessário à evolução. O fato de essa ideia estar atrelada à morte significa que para que haja superação ou evolução se faz necessária a relação do homem com seu lado metafísico.

Ìwòrì Méjì representa o conhecimento da vida espiritual com as forças do Òrún o ser inteligente que elimina as dificuldades. O lugar onde os obstáculos são vencidos pelos espíritos através da ciclicidade da vida carnal, ou seja, aqui se detém a ideia de que toda vida está atrelada a um destino, consequentemente, a uma missão fazendo referência ao extermínio de obstáculos sejam eles materiais ou imateriais.

Òdí Méjì representa o domínio da matéria sobre o espírito, não se deixar encantar pelas maravilhas e prazeres que se descortinaram diante de seus olhos, para que não fique preso para sempre, interrompendo sua jornada. Refletindo sobre esse aconselhamento nos remetemos ao que prende, confina o ser humano até a sua própria autolibertação de paradigmas, medos, prazeres ou até mesmo à falta de maturidade que nos limita a buscar novos conhecimentos.

Ìrósùn Méjì que representa o domínio do ser humano sobre seus semelhantes. Esse Odú procura sempre um proponente buscando fazer a pessoa entender que o acaso está presente quando nos remetemos às incertezas nas atitudes humanas durante a vida que pode trazer consequências; e mais, ele representa a lei da causa e efeito.

Òwónrín Méjì representa o equilíbrio que deve existir no Universo. Ensina o valor da vida e a necessidade da morte, o mistério que envolve a existência das rochas e montanhas (Vulcões, erupções). Aqui se percebe a ideia de que certas tentações são falsas riquezas que diminuem o valor da vida e consequentemente o seu sentido de viver.

Òbàrà Méjì representa o poder da realização dos desejos e sonhos do ser humano.Este Odú não permite erros e se houver pode levar ao desequilíbrio. Ou seja, no presságio desse Odú a pessoa que não admite erros se torna impaciente.

Òkánrán Méjì representa o poder da palavra do ser humano. Aqui muitas são as falas e há perigo na fala que mente e não é verdadeiro. Isto fez dele um homem sábio pelo fato de não ouvir muito para não errar no julgamento.

Ògúndá Méjì, representa os malefícios da corrupção e da decadência no ser humano; aqui se conhece todos os vícios que assolam a humanidade e os escravizam. Nesse caminho se conhece a violência, a traição, a ganância e a miséria humana, mas para não se tornar mais uma vítima deve-se fugir

Òsá Méjì (Òsá), representa o poder do fogo e da influência dos astros no ser humano. Esse Odú invoca a ideia de que devemos conhecer tudo sobre os seres no universo, sobre a influência da Lua na humanidade, os astros e a função dela sobre o ser humano, mas também avisou Èsù que se deve ter cuidado ao pensar que pode tudo, pois aí mora o perigo.

Ìká Méjì representa o mistério da reencarnação e o domínio sobre os espíritos. Aqui se fala sobre os mistérios da vida e da reencarnação, e assim se livrou do luto e da dor.

Otúrúkpòn Méjì (Èjì-Okô), representa os segredos da criação da Terra. Essa porta reserva sustos e surpresas sem fim. Aprendeu o segredo da gestação humana, o significado de permitir a vida, através de si próprio, ou seja, a vida do outro também depende de nós.

Òtúrá Méjì representa o pleno poder sobre a matéria, a força mágica. Bata com cuidado e muito respeito aqui se aprende sobre o universo da criação e sua energia, como nasceu a raça humana, a dominar os átomos e utilizar a sua força. Também pôde aprender a usar a força da fala humana, mas teve que desse Odú se livrar para não ficar preso à sua sabedoria. Aqui aprendemos que quem detém o conhecimento de ÒTúrá Méjì pode usá-lo para seduzir para o bem e para o mal.

Ìretè Méjì (Ògbé-Ogundá) representa o poder dos segredos dos espíritos da Terra. Diante dessa porta irá se deparar com esse Odú, que é o próprio espírito de Ilé, a Terra.

Òsé Méjì representa os males físicos do ser humano. Ensina sobre degeneração, decomposição, doenças, perdas e putrefação. Aqui se aprende que é perdendo que se ganha e deveria seguir sempre pelo caminho mais modesto. Aqui se aprende que a prevenção é o melhor remédio contra uma epidemia.

Òfún Méjì representa a união dos poderes dos outros 15 Odùs de Ifá. Aqui se pode conhecer aquele que ressuscita os mortos, ou seja; aquele que permite a continuidade da vida ao espírito após a morte. Este mesmo representa a junção representativa dos demais 15 Odús aqui explanados, nele tudo se forma à medida que tudo se dissipa. Uma vez que o conhecer e se for à sua busca trará toda sabedoria da vida para o resto da eternidade.

Vitor Cardozo
Ògún Yande

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