O Manual do devoto de Orisa

Vitor Cardozo
4 min readDec 27, 2021

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Precisamos entender o que é o candomblé para além do rito. O candomblé é ethos, ou seja, é uma prática filosófica de vida, que é fundamentada nos ritos. Não adianta ficarmos presos no animismo, não adiante em nada ficarmos olhando apenas para liturgia e aparato mágico dessa tradição, pois apenas isso não será capaz de dar conta e sustentar a nossa existência.

Eu diria que o manual do Candomblecista está no entendimento filosófico a cerca do mesmo, eu preciso ser capaz de compreender Orí enquanto a divindade primeira da minha existência, Orí é o farol que nos direciona diante da vida como evidência Ejiofun (10) é nele que está impresso a minha capacidade de reflexão, raciocínio e inteligência e eu preciso acessar e utilizar isso a meu favor. É em Orí que o destino que escolhi no Orun está impresso. É essa potência máxima dentro da Afro Religiosidade. É Orí quem vai me direcionar diante dos meus feitos aqui na terra e me imputar as consequências, sejam elas positivas ou negativas. Um bom Orí me conduz a excelência, um mau Orí me conduz as dificuldades. E aí nesse quesito entra um outro elemento de tamanha importância que é Iwa Pelé.

Iwa Pelé é o bom caráter, ele será o alicerce de toda nossa vivência, é Iwa que nos conduz a prosperidade, ter um bom caráter é se constituir como um ser humano que agrega, que promove o bem estar, que integra, que harmoniza, é em Iwa que estão nossos valores civilizatórios, não mentir, não proferir o mal ao outro, não ser condutor de ajé e ou negatividades, um bom caráter é capaz de suprimir os infortúnios de um Mau Orí, bem como um Iwa buruku , caráter ruim, suprime a boa sorte de um bom orí.

Até aqui conseguimos ter o entendimento de que o candomblé e sua filosofia nos coloca no centro de tudo. É uma religiosidade pautada no comportamento, na conduta, conduta está que é praticada na coletividade, eu preciso ser o melhor para min e para minha comunidade, pois está é a mais potente troca de axé. Os ritos serão planos de fundo para auxiliar no cumprimento dessas jornadas, mas um rito sem ação é algo em vão, bem como uma iniciação ou obrigação sem reforma íntima é apenas uma liturgia e é muito pouco provável que essa lhe trará mudanças significativas por si só.

Um terceiro ponto é Odu que aqui se entende por destino. Nós escolhemos um destino antes de vir a terra e Orunmila e Èsù são testemunhas desse destino escolhido por Orí, isso quer dizer que nós só experimentaremos aqui na terra o que compõe esse destino. Na prática isso quer dizer que nem todos serão ricos, nem todos terão filhos, nem todos gozaram de plena sorte e por aí vai, agora todos terão um caminho de uma vida com dignidade e suas necessidades básicas atendidas. Quando eu me afasto do cumprimento desse destino a minha vida tende a encontrar dificuldades, e nesse momento entra a necessidade de buscar com uma certa frequência o oráculo, pois é ele quem vai me direcionar a esse destino escolhido

Podemos perceber Odu, destino, como nossa jornada presente, como nosso caminhar aqui na terra e suas variações. Dentro disso, não podemos esquecer as leis de causa e efeito, afinal Orunmila nos ensina que somos senhores das escolhas e escravos das consequências. Aqui nesse ponto nos atentamos para o culto a Orisa como ação direta para nos auxiliar no cumprimento desses destinos, aprendendo com os itãs e arquétipos das divindades, não reproduzindo os erros cometidos pelos mesmos em suas epopeias.

O Candomblé é sobre viver em equilíbrio e harmonia com si mesmo através de Orí — Iwa — Odu como evidenciado nesse texto, é sobre assumir o controle de si e ter a certeza que não há um ser superior que nos controla como uma marionete, ou que cultuamos como um gênio da lâmpada. Nós somos únicos e exclusivamente responsáveis pela construção e direcionamento do nosso caminhar e para nos balizar temos essas tecnologias ancestrais que irão nos nortear. Èsù também é ponto importante nesse caminhar, pois ele quem vai supervisionar todo esse movimento, ele quem irá fazer a manutenção do que adquirimos, bem como ele quem irá nos corrigir quando necessário for. Èsù é a energia quem fará a roda da vida girar.

Dessa forma é fundamental que abandonemos os pensamentos mágicos e nos apresentemos ao jogo da vida, que construamos uma relação clara com a afro religiosidade e com o nosso lugar nela. Como digo, a iniciação mais potente é a do intelecto, iniciar nos ritos é apenas uma ponte para acessar essa totalidade. Mas, se ficarmos presos apenas na liturgia só seremos capazes de provar ½ de toda a potência que o culto a Orisa tem a nos oferecer.

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