O Candomblé não é uma religião!

Vitor Cardozo
3 min readJul 8, 2021

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Precisamos ter essa conversa, mesmo que seja breve. Em um primeiro momento precisamos pensar o termo “Religião” a etimologia da palavra vai nos direcionar para dois verbos do latim. O mais comum é o Religare, que traz a ideia de religar de atar o homem a uma esfera divina. Uma outra corrente vai dizer que a palavra se origina do verbo Relegere, que traz a ideia de retomar o que se estava perdido. Fato é que ambos os sentidos só funcionam dentro de uma lógica ocidental, portanto o termo Religião não da conta da Afro Religiosidade.

Por um outro lado, existe outro conceito ocidental que penso que chegaria mais perto de abraçar a afro religiosidade, que seria “Ethos”. Entende-se esse conceito pelo “modo de ser”, indo além o conjunto dos costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (instituições, afazeres etc.) e da cultura (valores, ideias ou crenças), característicos de uma determinada coletividade, época ou região. Essa definição é a que melhor abraça e significa de forma mais completa os cultos africanos e seu processo de reinvenção na diáspora em especial no Brasil.

Em Iorubaland antes da colonização, a palavra religião não era utilizada, e o culto aos Orixás estava profundamente inserido no ethos daquela sociedade, ele não tinha apenas um aspecto “religioso” ele era parte integrante e até reguladora de toda lógica social e cultural daquele povo, passando pelas diversas áreas como educação, política, arte, subsistência, mercado, enfim, tudo era pensado e regido dentro de um sistema em que os Orixás e toda sua narrativa estavam no centro.

Com a barbárie da escravidão, com a chegada dos negros vindos da Costa das Mina (os Fons e Iorubás) que teve um maior ancoramento em Salvador, em sua maioria chegam na condição de escravo de ganho e escravos domésticos, e a própria construção social da época, por volta dos anos de 1830, possibilitou que esse grupo tivesse uma maior difusão cultural, e pela grande concentração desses grupos em um mesmo local também é um agente que facilitou essa hegemonia cultural.

Contudo, não se pode deixar de considerar a barbárie e a violência imputada a esses negros. O sequestro de suas terras foi o agente fundamental para a formação do que seria chamado de Candomblé. Esses negros ao se verem em uma nova terra, completamente carentes de toda e qualquer referência cultual de suas origens, se agrupam e começa a remontarem as suas estruturas sociais e culturais em salvador a partir de comunidades que se organizavam e remontavam esse ethos.

Essas comunidades se organizavam de modo que os valores culturais originais eram impressos, passando desde o processo de distribuição de insumos, economia informal até a base litúrgica e principalmente, a meu ver o conceito mais bem desenvolvido e que pode ser visto até hoje no candomblé que é o compromisso com a felicidade, mesmo diante de toda violência sofrida.

Toda essa construção foi o que originou o Candomblé. O escritor Edson Carneiro faz uma constatação que acho salutar nesse debate construindo aqui, para ele “negro não teria sobrevivido à escravidão sem o candomblé”.

Dessa forma, está distante do Candomblé o a ideia de Religião trazida pelo ocidente, pensar candomblé apenas como um sistema religioso é beber apenas um gole de água diante de uma vasta fonte. Toda a estruturação do terreiro nos convida a uma ampla experiência cultural, social e filosófica. Pois, todo o sistema está ancorado em uma filosofia que questiona o lócus ocidental.

É um processo que antes de ser litúrgico ele é filosófico, ele é uma nova forma de se perceber enquanto indivíduo e uma nova formula de se relacionar com a sociedade, com a natureza e com sua relação com Deus. Outro fator muito importante é que na comunidade de terreiro e sua liturgia nos é convidado a resgatar nossa ancestralidade e nossa relação com o sistema litúrgico, Deus está em nós e em toda natureza, dessa forma não há o que ser religado, uma vez que nunca fomos desligados de nossa ancestralidade, ela é latente e está a nossa volta. Da mesma forma que não há o que retornar, uma vez que nada foi abandonado ou perdido. Toda essa estrutura astral sempre esteve por aqui desde a chegada do primeiro negro na condição de escravos a ancorar em nosso país. A partir disso, todos nós somos descendentes de uma ancestralidade preta, e, portanto, todos nós temos direito a essa tecnologia de orixá e a uma possibilidade de experiênciar uma filosofia e modelo social que não nos violente.

Vitor Cardozo
Ògún Yande

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