Hierarquia: Organização ou Opressão?

Vitor Cardozo
6 min readJul 29, 2021

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Sabemos que o Candomblé é composto por hierarquia, essa talvez seja a característica mais latente dentro do culto, e talvez nos dias de hoje seja a mais incompreendida. Vamos entender que a religião se relaciona com a cultura e por consequência com o modelo de sociedade da época, é fato que a pós-modernidade nos revela algumas questões. Hoje em uma moda geral as pessoas apresentam profunda dificuldade em seguirem regras, em viverem dentro de um regime hierárquico. As figuras de autoridade estão dissolvidas, seja em qual esfera for, a própria relação dentro da família onde os pais possuem dificuldades em colocarem suas figuras de autoridade sobre seus filhos, seja por leniência ou por ausência, fato é que temos uma geração que não reconhecem voz de comando, seja na figura do professor, do patão, e, portanto, do sacerdote.

É aos olhos dessa geração que a hierarquia se mostrará um problema. Em uma geração onde as regras são subvertidas, as vontades individuais se sobrepõem as regras estabelecidas e uma sociedade construída na customização dos desejos, manter uma estrutura hierárquica é um desafio.

Para imergimos nessa análise, precisamos entender que o Candomblé é uma religião que busca a auto realização individual e coletiva, essa estrutura religiosa se baseia em um processo hierárquico funcional que é estabelecido a partir de um conceito tradicionalista. Essa estrutura hierárquica está para um processo de resgates de valores éticos e morais que se estruturam para a construção de uma sociedade mais equânime.

Diferente do “mundo lá fora” o candomblé herdou muito bem de sua origem o conceito pétreo da Senioridade, toda estrutura social e religiosa se baseia nesse conceito. Isso quer dizer que tempo de iniciação é o que conta, e não podemos resumir esse conceito apenas a isso, precisamos entender que o “mais velho” é a autoridade que precisa ser respeitada eles são os portadores da sabedoria, das vivências e experiências, são bibliotecas vivas e isso precisa ser respeitado e reverenciado seja no âmbito religioso como no âmbito cronológico. Outro ponto que faz parte dessa estrutura construída dentro da comunidade de terreiro é o Oye (cargo) ao qual a pessoa ocupa. E aí vamos entender cargo como o conjunto de tarefas que uma pessoa deve desempenhar, obedecendo à hierarquia da empresa segundo Maximiano (2005). Ressalto novamente que o mais velho é sempre o mais respeito independente do cargo exercido pelo mais jovem. Ainda que o sacerdote esteja no topo da pirâmide hierárquica ele irá sempre ouvir e tratar com polidez seus mais velhos.

Dentro de uma casa de candomblé sabemos que múltiplas são as tarefas e os trabalhos realizados, esperar que a sacerdotisa/sacerdote tenha olhos e mãos para fazer toda essa gestão sozinho é uma prática fadada ao fracasso. E nessa lógica que se constitui a necessidade dos cargos, onde teremos os de primeira grandeza se assim podemos chamar, aqueles que irão auxiliar diretamente ao sacerdote nas questões do axé. Dentre eles teremos Iyalase, Iya Kekere, os Ogans também são parte importante onde para além de cuidar da musicalidade terão outras funções importantes na gestão do grupo.

Muitos serão os cargos dentro de uma casa de candomblé, contudo esse corpo irá variar de acordo com a tradição ou família. Não tenho a intenção nesse texto de me fixar na questão dos cargos, embora estejam presentes na base da hierarquia. Mas, seguimos o fio sobre o tema central. Todo “mais velho” exerce o papel de professor, e possui a tarefa dentro do espaço de terreiro de orientar e direcionar os mais jovens, isso quer dizer também que esse mais velho precisa ter polidez e jeito para exercer essa sublime tarefa.

Dentro dessa prática o que costuma incomodar muito é a dinâmica do comportamento dentro do culto enquanto se é Iyawo, e muitos pesam nessas normas de conduta como algo opressor, ou que remonta a prática escravista, e isso em muitas partes não é uma verdade, essas condutas são pautadas na relação que se constróis com os reis e com os sacerdotes em terra ioruba. Todas essas normas inclusive servem para identificar dentro da lógica do terreiro quem é quem… Ou seja, quem exerce uma posição de liderança, quem possui idade e quem é noviço.

No candomblé muitas coisas exigem direito adquirido para ser realizado. A prática de se sentar a cadeira por exemplo. Ganha-se esse direito na obrigação de 7 anos, então até lá dentro da roça de candomblé senta-se na esteira, ou em apere (banquinho). A cadeira remete ao trono que pertence a. “Realeza” ou lugar garantido aos anciões.

O comer no chão e com as mãos é extremamente sagrado, comemos no chão para que estejamos em comunhão com a natureza e as divindades, o comer com as mãos também remonta o fato de estarmos em comunhão com a natureza, com o simbólico dos primórdios. Nos abaixamos diante dos mais velhos e do sacerdote em respeito a trajetória deles, ao tempo que estão na terra e a todos os ritos que aquele orí já passou antes de min. A mesma explicação cabe quanto ao falar, o não olhar nos olhos está ligado a esse tabu diante da realeza. É tabu em iorubaland olhar nos olhos dos reis e das divindades, por isso essa prática é mantida para o sacerdote e igualmente por isso não encaramos as divindades, o olhar sempre é baixo em sinal de respeito.

A vestimenta e os acessórios também servem para demarcar nosso estágio dentro do culto, serve para identificação social. E é importante ser seguido. O Iyawo precisa ter seu tempo de iyawo, é o momento em que ele irá aprender, que ele irá observar mais que falar e essa fase é fundamental para a formação do futuro Egbon ou Sacerdote. Não devendo haver pressa ou a queima dessa etapa.

Dessa forma entendemos que o processo hierárquico no candomblé, ele não funciona para opressão ou humilhação, ele vem para estruturar uma forma de vida, ele estrutura uma lógica social que foge a ocidental. É um processo fundamentado no princípio da Senioridade. Os cargos estão para auxiliar o sacerdote na direção da casa e na divisão das tarefas, precisamos entender o espaço litúrgico enquanto um grande organismo que precisa de cooperação e participação para funcionar, onde cada agente tem sua importância dentro do que lhe cabe. No candomblé nem sempre o saber basta, podemos até saber, mas se ninguém nos outorgou o direito a prática, não podemos então praticar tal conhecimento.

Sabemos já o que esperar do Iyawo, contudo o Sacerdote e os Oyes da casa precisam também ter uma linha comportamental, ou seja, é fundamental que esses se comportem de acordo com o cargo exercido, nessa fala está a necessidade da boa postura, da polidez, do respeito, da boa execução de suas tarefas, da paciência para com os mais novos. Eles são a base eu diria da estrutura, são os espelhos, são os pontos de coesão, então o que se espera dessas pessoas é o alinhamento. Elas precisam estar na posição do acolhimento e de agregar, do corrigir sem humilhar, do brigar sem envergonhar, do falar sem depreciar, não podendo nunca serem ponto de desequilíbrio ou os geradores de conflito.

O Abian também é ponto fundamental pois ele é o aprendiz, ele é o que está ali para iniciar sua jornada de aprendizagem, sobre o culto, sobre o dia a dia no terreiro, eles são os futuros iyawos e por consequência os futuros mais velhos, então tratá-los com paciência e cuidado é fundamental. Lembremos que Candomblé é uma resistência ao colonialismo, não podemos remontar essa lógica em nossas casas. Ninguém é escravo de ninguém! Todos são força de trabalho, todos fazem a comunidade se movimentar. As normas de conduta e convivência até mesmo as hierárquicas se aplicam a todos. Todo mais velho possui um mais velho. O sacerdote na casa dele é a referência máxima na hierarquia, mas ainda sim, na casa do sacerdote dele ele está inserido numa lógica onde ele não é a figura máxima, ele é apenas uma engrenagem.

Dessa forma exige-se então uma grande harmonia na condução e estruturação dessa comunidade. A casa de santo não pode ser o local do desencontro, ela não pode ser o lugar onde as pessoas encontram a infelicidade. É uma tarefa difícil, pois estamos falando em uma comunidade montada por pessoas diversas, quase um BBB…Mas, é dever de todos buscarem um equilíbrio, fazer daquele espaço um lugar de convívio harmônico e no mínimo respeitoso.

É todos entenderem que qualquer instituição terá regras, terá uma hierarquia para manutenção do bom funcionamento. O candomblé não é diferente, e ai nós enquanto praticantes ou aspirantes a, precisamos pensar se iremos nos adequar a essas regras, se queremos vivenciar essas práticas, pois a religião não é algo customizável, ela jamais deverá se adequar as nossas questões, nós que precisaremos nos ajustar as regras dela, as regras estão lá a mais ou menos 400 anos e ela precisa ser mantida. O culto não é estático, ele se ajusta as realidades da época, entretanto certos padrões e regimentos são imutáveis, se não vira uma grande bagunça. E pedra que muito rola, não agarra limo, e candomblé é construído no limo dessas pedras!

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