Faça uma oferenda e a morte se transformará em riqueza disse ifá

Vitor Cardozo
5 min readJul 14, 2021

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Aqui vamos falar do sacrifício de animais dentro do candomblé. Muito se fala sobre esse tema, mas sobre vários aspectos, poucas vezes olhamos o rito e o que podemos aprender com ele. Sempre digo que os negros e negras que pensaram e estruturaram o candomblé eram dotados de uma inteligência absurda, pois todo o candomblé é autoexplicativo e dotado de grande lógica. Hoje vamos imergir nesse aspecto que é um dos pilares desse ethos que é o candomblé.

O ritual de matança como popularmente é conhecido entre os praticantes do candomblé é a base de quase todos os ritos, faz parte do dia a dia da religião, não que sejam diários os ritos, mas estão presente em muitos momentos de culto. O entendimento geral é que a partir da matança que alimentamos a nossa comunidade, uma vez que a casa de candomblé é composta por muitas pessoas e essas pessoas passam muitos dias nesse espaço e é lógico que essas pessoas precisam comer. No entanto o próprio rito nos elucida sobre isso, e a cada etapa do ritual vai sendo conduzido a esse momento da alimentação.

Muitos adeptos percebem apenas o ejé como o ponto alto do ritual, o que não é uma verdade. Não só o ejé (sangue) é veículo de axé, a própria morte daquele animal também é importante dentro da ritualística. Eu vou tecer esse fio não por um lado social ou acadêmico e sim, através do próprio rito, buscando entendermos juntos como a narrativa do Oro N’jé é autoexplicativa.

Dentro disso temos toda a apresentação dos animais a serem ofertados, no caso de ibosé, ou seja com a presença de Cabrito, temos cantigas bem específicos que antecederão o sacrifício quando por exemplo cantamos Lo bí ewe Eran dorisa , essa cantiga é ofertado uma folha ao animal e só quando ele aceita que se inicia o rito, essa cantiga diz que a partir da folha o Orixá nos traz a carne o alimento, temos a primeira referência já ao ato doméstico do alimento. Uma segunda cantiga que entoaremos na sequência evidencia o respeito aquele anima, Ka Forikan didena, Agborisa aka forikas, nesse momento nós reverenciamos o bicho, o cântico nos diz para nos levantarmos e reverenciamos o bicho pois naquele momento ele é o velho orixá, evocando a ideia de mantenedor, aquele que irá nos alimentar e, portanto, nos propiciar a vida a partir da alimentação.

A partir daí iniciamos o rito propriamente dito, invocamos Ògún que é o grande responsável pela imolação através do Obé (faca) Ògún pa…lobé Osi obé, nesse momento estamos firmando a titularidade dessa divindade como o senhor da faca e assumindo nossa posição como seu auxiliar ao usarmos o obé. Ògún por excelência preside o rito, Ògún lopa o…Ejé soro soro essa condição só irá mudar no caso dos ritos da família Kerejebe ou Injena que Omolu assume essa primazia pela exclusão do obé então cantamos Omolu pá ma bererê

Dessa forma digamos que o ato número um do ritual é a morte em si, onde essas divindades vão abrir caminho para que a morte se desdobre em sacrifício. E nesse momento surgirá a participação de outro Orixá. O ato da imolação ele é individual e isso por quê teremos Ògún ou Omolu que outorga ao sacerdote que irá infringir a morte ao animal esse direito, e temos aquele que receberá o sacrifício, e então a partir da morte entra Osossi, ele será responsável por tornar coletivo aquele ato, e nesse momento então inicia a noção de sacrifício. E isso inclusive se dará propriamente quando o cântico começa a ser respondido e respondido pelo coletivo, trazendo já a noção de coletividade, perceba então a importância de responder a cantiga, e de forma sutil vai se esvaziando a noção da morte enquanto um ato de violência e vai se transformando em um ritual comunitário, inclusive por isso que não se pode cortar o animal de uma vez, esse processo precisa ser feito aos poucos justamente para que esse processo de transição entre o ato de morte, vá se tornando um ato doméstico, de utilidade comunitária.

O ejé ao ser derramado se torna potência direta do criador, como fonte de vida, ele seria a expressão viva do criador, uma vez que o sangue é o que nos mantém vivo. Seguindo a construção da lógica do rito, após o término do ejé, Osossi continua sendo evocado em sua função de tornar aquele ato de violência em um ato doméstico, e é no momento pós imolação que entramos com os temperos, epô nje lojé epô nesse momento estamos mandando a mensagem que algo que iniciou com a violência e se tornou comunitário agora está assumindo o caráter doméstico a partir da alimentação e Osossi é a divindade quem traz o alimento para comunidade.

Mas, o ejé ainda está ali visível, ou seja, ainda há uma memória do ato de violência, e ela precisa ser apagada, e segue-se com a penúltima parte do rito, que vem com a função de retirar dessa equação a violência. Cantamos então Egan Kopo gbo adié Egan kopo gbo wa o e aí enfeitamos o ojubó escondendo assim o ejé, tirando das vistas de todos o rastro da violência que iniciou o rito. Nesse momento a frase do título desse texto faz todo o sentido, a morte virou riqueza e beleza, não é atoa que na cantiga a gente faz votos Egan kopo de boa sorte, de longevidade e por aí vai. Não podemos esquecer também que dentro de uma noção iorubá as penas são símbolos de beleza (Ekodidé, Lekeleke, Abé e outras).

Seguindo o ritual, o encerramos com a sua domesticação total pois todo aquele rito se ressignificou para um ato de alimentação coletiva, que é o momento que cantamos Tete Omi ojo do ni pao tete omi ojo do ni pá nesse momento espargimos água sobre todo o oro, e estamos dizendo que não houve morte naquele dia, a água apazigua e afasta a morte. Na sequência cantamos Eran ke so Eran ke so eran, uma mulher recolhe a bacia com os animais, está sinalizado através da cantiga que ali tem carne que será preparada para alimentar o coletivo. Não há mais morte, apenas alimento!

Após a saída do animal para cozinha, para então retornar como alimento, canta-se a Sasaniyn convidando então Osaniyn a participar do rito, e essa fase terá duas grandes funções, a primeira é apaziguar e afastar as energias que ali se apresentaram por conta do ato de violência e o próprio Iku (morte), o segundo é sinalizar o início do retorno daquele animal a natureza, é sinalizar de certa forma que aquele rito segue um princípio natural, é a morte como provimento de alimento para aquela comunidade.

O rito do sacrifício que inicia a partir do ato de morte, passa pelo processo de sacralização comunitária e termina na alimentação, dessa forma entendemos a importância de comer, comungar daquele alimento, e a necessidade de haver um xirê um festejo pós oro ejé, ainda que pequeno que é também para consolidar a ideia de beleza e o fechamento desse rito que iniciou lá atrás com a morte do animal, se tornou um rito e finalizou como ato comunitário de alimentação e se desdobrou então em uma grande celebração em torno da vida, da beleza, da propiciação de boa sorte.

Vitor Carodozo
Ògún Yande

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