Candomblé: É possível um caminho de (re)africanização do culto?

Vitor Cardozo
6 min readMay 21, 2021

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Ocandomblé é uma religião que tem sua formação a partir dos negros escravizados que ancoraram no Brasil a partir de 1530, esses negros trouxeram consigo sua fé e sua cultura, que mais tarde deu origem a religião dos Orixás em solo nacional. Foi em 1830 com a fundação da Casa Branca do Engenho Velho que acredita ter nascido a primeira casa de candomblé que mais tarde vira dar origem a muitas outros e ainda emprestar o seu modelo de organização de culto para tantas outras casas.

De lá para cá a religião passou por inúmeros processos históricos e sociais, desde a ilegalidade proposta pelo Estado, aos ataques sociais promovidos por outros grupos religiosos na atualidade. Pois bem, muitas coisas mudaram desde a fundação do Candomblé em 1830. O candomblé se espalhou por todo o território nacional, rompendo as barreiras do nordeste e chegando à região sudeste onde logo se espalhou e enraizou.

O advento da internet também foi um fator fundamental para esse processo de expansão e projeção do candomblé e, portanto, criando uma janela entre a diáspora e a terra mãe, que mais tarde será analisada nesse texto. Esses esforços em muito contribuíram para o seu processo de descriminalização e o ajudou em sua consolidação enquanto religião. Com isso também possibilitou para o ingresso cada vez mais crescentes de pessoas de classes sociais que dispõe de maior renda e não-negras.

Inclusive há quem diga que a partir da década de 1960 o Candomblé não poderia ser mais considerada uma “religião étnica”, o que eu discordo completamente. Pois, a base do candomblé está na ancestralidade, e sua história o coloca na posição de um quilombo urbano onde toda filosofia que o integra e o organiza é preta. Desvincular o candomblé de seus traços étnicos é criar outra coisa que não podemos chamar de candomblé, ainda que tenhamos muitos adeptos não negros, esse fato jamais irá fazer do candomblé algo não negro.

Com a chegada de muitos adeptos não negros nas religiões de matrizes africanas, e a própria reconfiguração religiosa no Brasil com a chegada dos Neopentecostais e então a utilização dos meios midiáticos como ferramentas do processo religioso, o capitalismo se integrou a lógica organizacional das religiões criando assim a noção de competição, adeptos passaram a virar clientes a serem cooptados e disputados e o discurso de adesão também se transformou.

O candomblé passa a não mais ser visto como um quilombo urbano que preza a preservação de um ethos ancestral que nos possibilita o retorno as práticas ancestrais, para torna-se então um balcão de negócios, vendendo magias e facilidades. E esses religiosos passam a se relacionarem com o processo religioso a partir de um comportamento mercadológico de consumo, onde o cliente sempre tem razão, e o serviço comprado precisa ser entregue a qualquer custo, a final pagou-se por isso.

Esse novo formato capitalista criou dentro do próprio candomblé um movimento de (re)africanização. Ora, se agora o processo religioso é visto como um mercado, não bastava mais ser sacerdote, era preciso chancelas que trariam destaque, e é nessa direção que as jornadas a Nigéria e Benin começam a surgir em busca dessas validações. Por volta das décadas de 1980 é possível analisar o fenômeno que hoje já é consolidado, onde algumas lideranças religiosas, em sua maioria branca, começaram a introduzirem reformas em suas liturgias com base no discurso do “puramente africano”.

Vamos pensar o lugar de onde surge esse processo de (re)africanização, como já dito no texto, o candomblé migrou de salvador para o Sudeste, principalmente no eixo Rio-São Paulo e se difundiu, com essa difusão se afastou de suas origens e tradições, criando assim lacunas nos processos de aprendizados e práticas litúrgicas.

E para um melhor entendimento desse fenômeno, Prandi (1998) explica que “voltar à África não para ser africano nem para ser negro, mas para recuperar um patrimônio cuja presença no Brasil é agora motivo de orgulho, sabedoria e reconhecimento público (…)”. Entretanto esse patrimônio buscado na África, não tem serventia no candomblé, uma vez que esse já é completo, ou seja, já foi estruturado e construído pelos ancestrais que o pensaram e organizaram. Então, quando essas pessoas se afastam desse candomblé, de suas origens, eles se debruçam na intelectualidade e nas facilidades que o capital favorece para então tecerem sua colcha de conhecimento disforme, e é preciso salientar que esse fenômeno está intimamente ligado ao ingresso dos não negros que possuem alguma relação com a academia ou possuem um maior poder aquisitivo para investirem.

Alejandro Frigerio também vai dizer que (re)africanização ocorre quando adeptos do candomblé se sentem insatisfeitos com o nível de conhecimento que possuem e voltam-se para África com intuito de ampliar seus repertórios teológicos e ritualísticos. Com essa análise de Frigerio assim como a de Prandi, fica evidente, que a questão central desse processo está na falta de conhecimento litúrgico e não uma busca por alguma identidade ou resgate a alguma subjetividade.

Esse terreno fértil deu espaço também para a chegada de novos grupos religiosos tradicionais iorubá, como o culto a Ifá que toma força e tenta forçar uma hegemonia sobre o candomblé, onde muito de seus sacerdotes utilizam-se de meios virtuais para deslegitimar e vender uma falsa ideia de incoerência litúrgica dentro do candomblé, e acredito que nesse caso a questão central esteja intimamente ligada ao mercado da fé, a busca por adeptos/consumidores. É preciso dizer também que existem sacerdotes sérios realmente comprometidos com a prática espiritual e esse texto de forma alguma tende a criar conceitos generalistas.

Se o caminho de retorno par África é tão trilhado na tentativa de construção de saberes e liturgias, dá-se a falsa impressão de que no candomblé a busca desses saberes é algo inatingível e sem dúvidas podemos dizer que não é, contudo exige protocolos e hierarquias a serem seguidas, regras profundas que são levadas à risca e mantidas pelos mais velhos.

Como é adquirido o conhecimento no candomblé?

Para “aprender candomblé” é fundamental que se vivencie o dia a dia, que se esteja presente e seja ativo nas funções da casa. Mas, quando esse praticante se torna consumidor ele abandona também a necessidade de participação, esse sujeito não se vê mais como parte da engrenagem que faz com que o organismo funcione. Trocando em miúdos, muito desses praticantes não querem mais estar presente para as tarefas que a casa exige, sabemos que o trabalho é pesado. E são essas mesmas pessoas que mais tarde serão ordenados sacerdotes e como não houve participação logo não se teve também o processo de aprendizagem.

Pois é em meio a uma limpeza na cozinha por exemplo que um mais velho irá cantarolar alguma cantiga nova, e dali que sairá uma comida de santo específica, ou um presente será elaborado ou ainda um ebó será montado, a cozinha é o um dos principais lugares para se estar quando se que quer aprender candomblé. É estando na arrumação para um orô que será possível ver a montagem e, portanto, os elementos que compõe aquela cerimônia, e ainda que você não assista, escutara cantigas e rezas, e presenciará o seu desmonte, e assim aos poucos você vai montando e organizando esses saberes, que como relatado nesses exemplos, só será possível a partir da estadia.

E aí esses novos sacerdotes, que não estiveram presente nas suas casas de candomblé, ou que passaram por inúmeras casas diferentes não conseguindo ficar tempo o suficiente para aprender alguma coisa, mais tarde estão a frente de suas próprias casas, dirigindo liturgias e percebendo então que o seu conhecimento não é suficiente. E nesse momento o caminho mais prático e menos burocráticos que eles possuem é e começarem a se voltar para as literaturas, fazer contatos com sacerdotes africanos ou ainda indo para Iorubaland fazer iniciações para complementarem essas lacunas, distanciando-se mais da tradição, do que é o candomblé. Que a terra mãe é nossa origem é sabido, contudo tudo que ela poderia oferecer para o candomblé já foi oferecido no século XVIII e início do XIX.

Não se pode construir o que já foi construído e está funcionando. Essa tentativa de desqualificar o candomblé e deslegitimar o que sempre foi legítimo é a tentativa de atacar o que não se pode aprender nos livros e artigos ou ainda por lives. A melhor maneira de aprender o Candomblé e ter uma base sólida de conhecimento é estar e ser ativo em suas comunidades de terreiro, é aprender com suas raízes e famílias de axé, sentar-se para escutar os mais velhos, estar e pertencer, todo o resto é engodo, ou tentativa de vender um produto puro, para agregar um maior valor de mercado.

Vitor Cardozo

Ògún Yande

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